Escopo 3: desafio rumo à neutralidade de carbono

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De fato, na longa jornada rumo à neutralidade de carbono, que tantas empresas terão que empreender para continuar existindo, há muitos obstáculos a serem transpostos.  Recentemente, anúncios de compromissos “net zero” surgiram globalmente em todos os setores da economia, como uma ambição já definida para um número crescente de corporações. Inclusive, existem até empresas que já se denominaram “carbono negativo”. Ou seja, emitem menos do que capturam da atmosfera.

Mas, a realidade não é tão simples assim. A saber, a neutralidade de carbono precisa ser analisada considerando diferentes perspectivas e isso faz toda a diferença. Então, é sobre isso que trataremos aqui nesse texto.

 

Os 3 escopos das emissões de carbono

Primeiramente, é preciso entender que existem três “Escopos” através  dos quais os gases de efeito estufa (GEEs) são reportados. Isto é, cada escopo se refere a diferentes categorias de emissões. Assim, são eles:

Escopo 1: emissões diretas

Aqui são considerados os GEEs que uma empresa emite diretamente. Por exemplo, pela queima de combustível em suas caldeiras e veículos.

Escopo 2: emissões produzidas indiretamente

Já as emissões de Escopo 2 são aquelas que a organização produz indiretamente. Por exemplo, através da compra de energia para iluminação, aquecimento ou refrigeração de edifícios.

Escopo 3: emissões pelas quais a empresa é indiretamente responsável

Por sua vez, o Escopo 3 refere-se a todas as emissões pelas quais a empresa é indiretamente responsável, tanto a montante como a jusante  da sua cadeia de valor. Aqui estão incluídas as emissões provenientes da compra de produtos de fornecedores e de seus produtos, quando os clientes os utilizam e descartam. Bem como as emissões provenientes de deslocamento de funcionários e viagens de negócios, além da destinação e tratamentos dos resíduos gerados nas operações.

 

neutralidade de carbono

 

A neutralidade de carbono virou moda

Assim como o Escopo 1 e 2, o termo foi criado em 2001  pelas ONGs World Resource Institute (WRI) e World Business Council for Sustainable Development para descrever o uso e a emissão de carbono.  Mas, em 2011, quando o GHG Protocol incluiu o Escopo 3, as empresas começaram a usar uma abordagem parcial e fragmentada, ao invés de cumprir o protocolo integralmente a fim de desenvolver um inventário completo e fidedigno.

Então, no ano passado, o “Escopo 3” deixou de ser um termo de nicho, entendido apenas por especialistas na contabilidade de gases de efeito estufa (GEE), para se tornar um termo “de moda” para as empresas. De fato, segundo a empresa de dados financeiros Sentieo, o número de vezes que o “escopo 3” foi mencionado em reuniões sobre resultados trimestrais e conferências com investidores aumentou 15 vezes. Assim, foi de apenas 47 menções em 2019 para 689 em 2021.

 

A neutralidade de carbono não pode mais ser ignorada

Para muitas empresas, as emissões de escopo 3 representam mais de 70% da pegada de carbono, muitas vezes chegando até 90%. Portanto, é crucial enfrentá-las para atingir as metas de neutralidade.

Por outro lado, estas são emissões sobre as quais as empresas têm um controle significativamente menor. Então, requerem a obtenção de dados muito mais complexos e abrangentes comparativamente aos Escopos 1 e 2. Por exemplo, como uma empresa pode reduzir as emissões dos carros que fabrica quando estão sendo dirigidos pelos consumidores? Ou de um par de jeans depois que os produziu?

No entanto, apesar da dificuldade para reduzir essas emissões, várias empresas aceitaram o fato de que não podem mais ignorá-las. Inclusive, certos standards e certificações exigidas pelo setor financeiro requerem que as empresas relatem o escopo 3. Por exemplo, a partir de abril de 2022, o governo do Reino Unido estará obrigando as empresas a divulgar o risco climático segundo as regras desenvolvidas pela Taskforce on Climate-related Financial Disclosure (TCFD).

Também nos EUA, a Securities and Exchange Commission (SEC) está avaliando a obrigatoriedade de relatórios sobre o escopo 3. Por último, a Bolsa de Valores de Cingapura anunciou em dezembro que, para alguns setores de alto impacto, exigirá a divulgação das empresas alinhada ao TCFD.

O SBTi e as metas de neutralidade de carbono

Muitas empresas compreenderam que as metas de neutralidade de carbono precisam ser perseguidas, levando a um crescente número de adesões ao Science Based Targets Initiative (SBTi). A saber, esse órgão assessora as empresas no seu comprometimento a metas baseadas no que a ciência mais recente considera necessário para atender às metas do Acordo de Paris. Ou seja, limitar o aquecimento global abaixo de 2°C acima dos níveis pré-industriais, almejando um máximo de  1,5°C. Assim, o SBTi tem 1.100 empresas com metas validadas e 95% delas cobrem o escopo três.

A iniciativa exige que as empresas cujas emissões de escopo 3 correspondem a mais de 40% de suas emissões combinadas de escopo 1, 2 e 3 estabeleçam metas de redução para o escopo 3.

O novo consumidor quer empresas sustentáveis

No entanto, a pressão também vem do lado do consumidor. De acordo com uma pesquisa realizada em 2020 pela Smurfitt Kappa, empresa líder no setor de embalagens na Europa, os produtos “sustentáveis” ​​estão vendendo de 3 a 4 vezes mais do que os tradicionais. Também revela que 61% dos consumidores esperam que as marcas das quais compram tenham práticas e métricas claras de sustentabilidade.

Com isso, fica evidente que para avançar na transição para a neutralidade, baseada na ciência, é preciso  envolver a transição de toda a cadeia de valor. Ou seja, não apenas só na própria empresa, mas também em todos os seus fornecedores e consumidores.

A demanda dos investidores

Também os investidores estão analisando suas próprias pegadas de escopo 3, que incluem as emissões das empresas que financiam. Assim, na prática isso significa que precisam de informações mais transparentes. Em breve, isso deve repercutir na agenda ESG, que vai incluir este tipo de informação entre os critérios de avaliação de risco de investimento.

 

pegada de carbono

 

Neutralidade de carbono: mas onde estão os relatórios?

No entanto, o aumento do interesse nas emissões do escopo 3 ainda não se traduziu em relatórios. De acordo com uma pesquisa do Boston Consulting Group (BCG), publicada em outubro de 2021, embora 85% das 1.290 empresas pesquisadas quisessem reduzir suas emissões de GEE, apenas 9% eram capazes de medi-las de forma abrangente. Sobretudo, o Escopo 3 se mostrou uma barreira significativa, com 66% dos entrevistados não relatando nenhuma das emissões relacionadas à sua cadeia de valor.

Da mesma forma, uma pesquisa do grupo ambientalista norte-americano Ceres descobriu que, das 50 maiores empresas norte-americanas de alimentos com exposição às commodities agrícolas de maior emissão, apenas 20 divulgam emissões de escopo 3. Ademais, somente 14 incluíam o escopo 3 em suas metas gerais de GEE, enquanto apenas oito tinham emissões de escopo 3 com reduções atreladas a metas validadas pelo SBTi para 1,5°C ou bem abaixo de 2°C.

 

O grande desafio da Neutralidade de carbono

De fato, o trabalho numa empresa para identificar, mapear e medir as emissões do escopo 3 e criar um relatório robusto pode levar de 2 a 3 anos. Sem dúvida, relatar as emissões dos fornecedores pode ser uma das partes mais significativas das emissões de escopo 3 de uma empresa.

Por exemplo, ela compra um produto de uma fábrica e essa fábrica, por sua vez, é suprida por milhares de pequenos produtores que não mantêm nenhum registro das suas emissões. Então, a menos que haja bastante transparência na cadeia de suprimentos, é muito difícil saber como fazer investimentos para impulsionar as reduções. Bem como rastrear os desempenhos ao longo do tempo.

Com certeza, devido à grande abrangência do escopo 3, há muito para as empresas desvendarem. Por exemplo, esse escopo inclui:

  • Aquisição de bens e serviços,
  • Informações sobre operações terceirizadas,
  • Bens de capital e instalações arrendadas,
  • Uso de produtos em cada mercado-chave,
  • Taxas de reciclagem no final do ciclo de vida,
  • Emissões em investimentos e franquias.

Emissão de carbono baseadas em suposições

Por causa dessa dificuldade, a maioria das empresas no momento estima suas emissões usando suposições. Estas são baseadas na multiplicação da quantidade de um determinado material que compram pelo número médio de toneladas de CO2 por dólar gasto. Mas, isso pode não corresponder a um número real, que uma vez averiguado pode ser muito maior ou menor do que o estimado.

Inclusive, isso poderia até comprometer os resultados de uma estratégia de neutralidade, pois uma mudança incremental não necessariamente significaria um avanço real. Por exemplo, seria muito difícil  explicar isso ao investidor. Com certeza, metas baseadas em estimativas pouco transparentes vão induzir à sensação de “greenwashing”. Por isso os anúncios ambiciosos sobre a neutralidade de carbono devem ser cautelosos e muito honestos.

 

A demanda por profissionais especializados e as novas tecnologias

Atualmente, há uma enorme busca por talentos no setor, à medida que aumentam os requisitos para as empresas compartilharem melhores dados sobre a pegada de carbono. Assim, além de ferramentas contábeis para ajudar a obter e armazenar dados de GEE de fornecedores, a tecnologia também está evoluindo no que diz respeito à coleta de dados sobre os eles. Por exemplo, usando blockchain, inteligência artificial (IA) ou o uso de dados obtidos via satélite e tecnologia de sensores diretos para obter informações de um determinado fornecedor ou local.

Infelizmente, não temos tempo para esperar que as novas tecnologias resolvam os desafios impostos pelo escopo 3. Pelo contrário, é preciso agir rapidamente. Certamente os profissionais aptos a liderar estas iniciativas e com uma visão abrangente da sustentabilidade serão um grande ativo em todos os setores.  Sem dúvida, este é um caminho longo e árduo, mas inevitável.

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Monica Kruglianskas

Quem escreveu?

Monica Kruglianskas
Coordenadora Pedagógico da Área de Sustentabilidade Atua como sênior advisor em sustentabilidade e reputação corporativa há mais de 20 anos na Europa e América Latina. Atualmente é coordenadora e professora de sustentabilidade na FIA Business School. Antes, Monica foi Head of Sustainability na Danone Espanha e consultora em think tanks como Cambridge Institute for Sustainability Leadership e Forum for the Future, em Londres.
Comentários (2)
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Adriana Kury Lins de Melo / 19 de julho de 2023

Olá Mônica
adorei a maneira como vc colocou a questão do escopo 3. Estou fazendo um curso especializado e a sua colocação foi perfeita. Abraço, Parabéns

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Monica Kruglianskas
Monica Kruglianskas / 19 de julho de 2023

Oi Adriana, que bom que você gostou. Esse tema é bem complexo mas precisa ser encarado de frente! Um abraço, Monica

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