ESG e Friedman: Dilema ou Evolução?

ESG e Friedman

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Em 2001, um pouco antes de iniciar meu doutorado em sustentabilidade na Europa, vendi uma empresa (trading de artigos de luxo), bastante lucrativa e promissora, que fundei sete anos antes.

Foi uma experiência fantástica e me permitiu, além de compreender o que faz uma empresa dar certo, vivenciar em primeira mão os desafios vividos por um empresário para manter um negócio próspero. Ao mesmo tempo, atuando de forma responsável e positiva com relação aos seus stakeholders, a sociedade e o meio ambiente.

Nos anos seguintes, após mergulhar mais profundamente no mundo da sustentabilidade, passei a investigar com maior interesse as motivações que levam os negócios a atuar de forma mais responsável. Para analisar o neoliberalismo econômico, me aproximei mais da obra do economista Adam Smith.

A doutrina de Milton Friedman, que norteou o desenvolvimento econômico das últimas décadas, celebrava a Riqueza das Nações de Smith, exaltando a competição. Porém, sem ainda sem levar em conta a Teoria dos Sentimentos Morais, que argumenta que o comércio funciona melhor em meio a uma estrutura social e moral compartilhada.

Intrigava-me o fato de que nosso sistema econômico tivesse adotado uma parte de sua obra, mas deliberadamente – ou não – evitado a outra, e os negócios não se mostravam muito interessados em questionar isso.

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Nossos preconceitos podem alterar drasticamente a maneira como percebemos o mundo

Há um ditado atribuído à proeminente escritora Anaïs Nin que reflete essa ideia: “Nós não vemos as coisas como elas são. Vemos as coisas como nós somos” (na verdade a frase tem origem talmúdica, e foi usada por muitos autores dos últimos séculos).

Uma característica universal da sociedade humana é que sempre cremos que a maneira como vemos o mundo é natural, inevitável e imutável. A elite empresarial ocidental tem a mesma tendência natural, acreditando que a forma como administra seus negócios também é “natural” e imutável. Mas não é. Nossos padrões culturais e as suposições que usamos para dar sentido ao mundo não existem como estruturas fixas que podem ser ordenadas em uma hierarquia de valores.

Pelo contrário, as normas culturais estão em constante mudança à medida que novas influências emergem e se integram às antigas. Nem sempre podemos ver como nossas ideias estão mudando. O poder da cultura é que aceitemos essas suposições tão profundamente como certas, que raramente notamos sua presença ou como elas estão mudando de forma contínua e sutil.

Hoje, a cultura dos negócios ocidentais – e suas suposições subjacentes – estão em fluxo. Embora a ascensão do mundo ESG seja um indicador disso, não conta toda a história. Uma combinação de níveis, antes inimagináveis, de transparência digital, mudança de costumes sociais e poder das multidões cibernéticas está mudando o contexto cultural dos negócios do século 21. Mas, muitos CEOs ainda não compreenderam isso plenamente. A agenda ESG não é a causa dessa mudança, mas sim um sintoma extremamente visível.

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O Capitalismo de Friedman

Para entender essas mudanças, vale a pena considerar uma figura histórica central para o mito da criação sobre o qual se baseiam as escolas de administração modernas: o economista americano Milton Friedman, mais conhecido por suas pioneiras teorias econômicas de livre mercado.

Em 1970, Friedman publicou o que foi sem dúvida sua ideia mais influente, um artigo na The New York Times Magazine onde argumentava que “há somente uma responsabilidade social das empresas – usar seus recursos e se envolver em atividades destinadas a aumentar seus lucros” para o benefício de seus proprietários, ou seja, seus acionistas.

De acordo com Friedman, concentrar-se em algo que não fosse maximizar os lucros dos acionistas era um abandono do dever fiduciário. Ou até mesmo uma subversão total do capitalismo. Isso levou, por exemplo, milhares de graduados em faculdades de administração a se concentrarem implacavelmente nos resultados financeiros. Assim, desconsiderando as consequências sociais mais amplas.

Fenômeno universal

Até hoje, o capitalismo de Friedman com o “acionista como prioridade” tende a ser encarado, por muitos, como um fenômeno universal, livre de contexto, a ser aceito ou rejeitado. Mas as ideias devem ser colocadas em seu momento histórico e cultural para revelar suposições não explicitas. A visão de Friedman não é exceção. Suas ideias foram desenvolvidas durante a Guerra Fria. Ou seja, em reação a um período pós-guerra em que muitas grandes empresas americanas eram mal administradas, por gerentes paternalistas e indulgentes.

Além disso, suas ideias evoluíram durante um período em que a sociedade americana e europeia, emergindo da economia de guerra, acreditava na responsabilidade do Estado para resolver problemas sociais e políticos. Supunha-se que as empresas poderiam – e deveriam – terceirizar os problemas ambientais e sociais para o governo.

Transparência

Outro ponto se refere à transparência. As únicas ferramentas para escrutínio externo que existiam durante esse período eram as contas corporativas. Elas eram emitidas após um intervalo de tempo significativo, e os extratos oficiais da empresa. Além disso, uma característica importante dessa era foi uma reverência pela tecnologia e pela matemática.

A velocidade e diversidade das inovações tecnológicas em meados do século 20 aumentou dramaticamente o poder da computação, culminando na criação de ferramentas matemáticas. Não apenas para identificar tendências na economia, mercados financeiros e vida corporativa, mas também para prever acontecimentos.

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Visão de túnel

Assim, o que permaneceu obscuro no credo apresentado por Friedman nos anos 70 foi a suposição de que os governos podem e devem resolver problemas sociais. Assim, apenas acionistas e gerentes precisam saber o que uma empresa realmente faz e que modelos técnicos podem capturar e prever o que as empresas deveriam fazer em seguida e quais riscos enfrentarão. Esta visão celebrava o conceito de visão de túnel. Ou seja, apenas os acionistas importavam. Questões como guerra, tensões sociais, problemas ambientais e pandemias estariam fora deste radar.

As décadas seguintes reproduziram esta doutrina em vários âmbitos. Por exemplo, escolas de negócios, ensinaram aos executivos, ano após ano, os princípios do capitalismo de acionistas e os modelos matemáticos que os sustentavam. Conselhos corporativos e fundos de investimento invocavam a visão em túnel do capitalismo de Friedman nas assembleias gerais anuais, nos relatórios corporativos e nas estratégias financeiras. De tal forma que isso parecia não apenas normal, mas também natural, inevitável e adequado.

Vantagens

Essa abordagem de visão em túnel trouxe, em muitos casos, enormes benefícios. Como observou Adam Smith, na Riqueza das Nações, a competição entre diferentes atores econômicos é uma força poderosa para impulsionar a inovação e o crescimento. Também o dinamismo econômico tende a ser mais potente quando há uma clara divisão de trabalho e especialização.

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Desvantagens

Mas, no século 21, está cada vez mais claro que a visão em túnel também tem suas desvantagens, e certas questões “fora do túnel” estão prejudicando os planos dos negócios. Algumas questões são de natureza social, como uma repentina e rápida mudança nas atitudes da sociedade ocidental em relação ao racismo e ao sexismo. Ou seja, os costumes dominantes nos meados do século 20 (como o assédio casual no trabalho) não são mais considerados aceitáveis. Outras questões são de natureza política e econômica. Na segunda década do século 21, a sociedade já não acredita mais que depender de instituições estatais era uma maneira eficaz de resolver problemas sociais e ambientais.

Outra grande mudança foi ambiental: questões como as mudanças climáticas começaram a ter impactos materiais nas ações das empresas. O conflito geopolítico foi outra “externalidade” que veio à tona. O mesmo aconteceu com o populismo político, do tipo desencadeado por Donald Trump nos EUA e Boris Johnson no Reino Unido e agravado pela ocorrência da pandemia COVID 19. Antes de 2020, esses tipos de riscos não eram incorporados, via de regra, nas previsões de negócios.

No entanto, a maior mudança no contexto dos negócios. Sem dúvida, o que tornou os temas acima tão extraordinariamente ameaçadores para os líderes corporativos, foi a tecnologia e a ameaça das mudanças climáticas.

Em 1970, quando Friedman escreveu seu artigo, os relatórios impressos para os acionistas eram a principal fonte de informação sobre negócios. Na segunda década do século 21, a explosão de ferramentas digitais já permite que a sociedade acompanhe, de forma instantânea e com precisão, o que as empresas estão fazendo. Não só isso, mas também que se uma com força para criticá-las.

Monitoramento Digital

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Sites usam satélites para monitorar as fontes de emissões de carbono de todo o mundo com detalhes granulares. Assim, os ativistas podem ver, com transparência e em tempo real, quais empresas e indústrias são responsáveis por essas emissões. E, então, responsabilizá-las.

Sites como o Glassdoor oferecem ao público uma maneira de rastrear o que os funcionários realmente pensam e oferecem. Assim, é possível ter informações privilegiadas sobre “bullying”, racismo, remuneração ou relações de gênero em milhares de locais de trabalho.

Movimentos como o #MeToo que proporcionam o compartilhamento de histórias de assédio e abuso sexual, têm levado uma serie de líderes coorporativos (anteriormente onipotentes) a perderem seus empregos. Com o novo nível de transparência e dados disponíveis, líderes corporativos sabem que agora estão sendo observados.

Hoje, para líderes empresariais, ignorar o que os “stakeholders” pensam sobre meio ambiente, relações de gênero, racismo ou outros temas que interessam ao público é cada vez mais perigoso. Talvez não seja surpreendente, então, que em 2019 a poderosa Mesa Redonda de Negócios nos Estados Unidos, tenha anunciado que estava abandonando a visão de Friedman. A visão lateral está substituindo a visão de túnel.

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ESG hoje é sobre gestão de risco, não ativismo

A sigla ESG (Environmental, Social, Governance) é talvez o símbolo mais visível desta mudança do “zeitgeist”, um jargão moderno de negócios. Aliás o “zeitgeist” é onipresente como fonte de credibilidade moral e extremamente desconcertante para os leigos. Principalmente porque reflete um modo de pensamento cheio de contradições. De certa forma, o ímpeto central por trás dessa tendência não é inteiramente novo. Em meados do século 20, os líderes das empresas gostavam de dizer que tinham ‘responsabilidades sociais‘ em um sentido vago. Mas, no final do século 20 a maioria das grandes empresas tinha departamentos de responsabilidade social corporativa (RSC), muitas vezes sem muito poder ou recursos.

O movimento ESG, no entanto, difere do conceito de RSC de forma sutil, mas importante. Em primeiro lugar, os departamentos e princípios de ESG estão no centro das empresas. Tanto que a maioria das grandes empresas agora tem “Chief Sustainability Officers”. Estes, normalmente se reportam ao conselho corporativo e muitas vezes ocupam funções cruciais de tomada de decisão.

Em segundo lugar, enquanto o movimento de RSC normalmente discutia o impacto que uma empresa tinha no mundo em termos de questões sociais e ambientais, as estruturas ESG geralmente fazem o inverso. Elas analisam não só a pegada externa de uma empresa, mas também como os fatores poluição ou protestos sociais podem prejudicar a empresa.

Isso leva a uma terceira diferença fundamental:

A razão para as empresas falarem sobre ESG hoje não é apenas porque seus líderes querem melhorar o mundo ou evitar prejudicá-lo. Mas sim porque os líderes corporativos também são movidos pelo desejo de evitar prejudicarem a si mesmos. O C-suite já entende que, como o público agora tem acesso à transparência e ativismo digital, as empresas que ignoram as principais questões sociais e ambientais sofrerão danos à sua reputação. Além de multas regulatórias ou perda de funcionários, investidores e clientes. Hoje, ESG é sobre gestão de risco, não ativismo.

Obviamente não é assim que, necessariamente, a maioria dos líderes corporativos posiciona o relacionamento de suas empresas com a agenda ESG. As declarações públicas estão repletas de narrativas ativistas sobre a melhoria do meio ambiente e da sociedade. Por isso é tentador levar a retórica ESG literalmente, acreditando que ela tenha uma agenda ativista. Alguns espaços do universo ESG genuinamente ainda defendem isso. Principalmente na esfera do investimento de impacto (um subconjunto da agenda ESG que se esforça para investir de uma maneira que não cause danos e crie resultados positivos. Mesmo ao custo de sacrificar os retornos do investimento).

No entanto, a linguagem de altruísmo que enquadra o discurso ESG é sobre autodefesa e interesse próprio também. É uma forma de as empresas reconhecerem a necessidade de visão lateral em sua gestão de risco, em um mundo onde a visão em túnel não funciona mais.

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Então ESG é hipocrisia?

Os princípios centrais da agenda ESG podem certamente parecer contraditórios. Desde que o movimento explodiu em escala, após o repúdio da Business Roundtable à doutrina Friedman, surgiu todo um ecossistema dedicado a medir a adesão das empresas a esse novo credo. Sobretudo, com a narrativa de uma iniciativa focada no benefício dos investidores.

Agora existem sistemas de classificação ESG. Por exemplo, ferramentas para elaboração e divulgação de relatórios, escolas de capacitação e estruturas contábeis, entre outras iniciativas. Todas no âmbito desse novo ecossistema cujo tamanho e escala criaram um mecanismo próprio de auto reforço.

No entanto, o fato dessas métricas tentarem acompanhar questões ambientais ao lado de questões sociais é muitas vezes problemático. Isso porque, enquanto as ambientais podem ser bem mais fáceis de medir, as sociais não são. Além disso, enquanto as empresas podem ter um bom desempenho em uma métrica, isso não significa que eles pontuam bem em outra.

Como resultado, as classificações ESG podem variar muito.  Mesmo assim, enquanto essas contradições atormentam o movimento ESG, o fato das empresas agora se sentirem compelidas a prestar atenção a esse conjunto de critérios é uma vitória para os ativistas sociais. Isso mostra que o contrato social entre as empresas e a sociedade em geral está mudando. O que não deve ser mais ignorado é o impacto do contexto cultural e nossa contribuição individual para esse movimento.

Talvez a visão de Adam Smith sobre como os mercados deveriam funcionar esteja finalmente sendo devidamente realizada. Recordando minha experiência como empresária no passado, penso que incorporar estes aspectos trariam vários questionamentos sobre a sustentabilidade do negócio. Mais especificamente: o que realmente mereceria ser sustentado? Sem esta reflexão profunda, os negócios de hoje não terão um lugar no futuro.

 

Referências:

https://www.educlad.com.br/a-riqueza-das-nacoes-pdf/

http://metalibri.wikidot.com/title:theory-of-moral-sentiments:smith-a

https://www.nytimes.com/1970/09/13/archives/a-friedman-doctrine-the-social-responsibility-of-business-is-to.html

https://www.businessroundtable.org/business-roundtable-redefines-the-purpose-of-a-corporation-to-promote-an-economy-that-serves-all-americans

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Monica Kruglianskas

Quem escreveu?

Monica Kruglianskas
Coordenadora Pedagógico da Área de Sustentabilidade Atua como sênior advisor em sustentabilidade e reputação corporativa há mais de 20 anos na Europa e América Latina. Atualmente é coordenadora e professora de sustentabilidade na FIA Business School. Antes, Monica foi Head of Sustainability na Danone Espanha e consultora em think tanks como Cambridge Institute for Sustainability Leadership e Forum for the Future, em Londres.

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