A proposta de acordo pelo fim da poluição pelos plásticos: um novo Regime Ambiental após 50 anos da Conferência de Estocolmo?

poluição pelos plásticos

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Neste ano de 2022 celebram-se os 50 anos da Conferência de Estocolmo, o primeiro encontro das Nações Unidas dedicado à interface entre o meio ambiente e o desenvolvimento humano. Ao longo dessas cinco décadas é inegável que muito mudou na visão e o comportamento de governos, empresas e da sociedade, e se por um lado ainda temos grandes desafios a superar, por outro temos muitos avanços a comemorar.

Um destes desafios, destaque na Conferência dos Oceanos da ONU encerrada no último 01 de julho, é a poluição pelos plásticos. Mas este é um tema no qual também tem ocorrido avanços, principalmente a decisão das Nações Unidas em março deste ano de negociar um acordo vinculante para o assunto. Embora possa parecer tímido, esse é o primeiro passo para a criação de um novo regime ambiental internacional, talvez o mais importante desde a conferência da Eco-92.

Para entender o que esta proposta indica e quais possíveis desdobramentos, a seguir se discute o conceito de regimes ambientais, a poluição pelos plásticos, e a própria resolução das Nações Unidas.

 

poluição pelos plásticos

 

A nova ordem global e os regimes ambientais internacionais

Desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, muito mudou na área ambiental. Se naquela época as empresas resistiam em investir para reduzir seu impacto no meio ambiente, e o enfoque coercitivo era a única alternativa às políticas públicas, hoje a situação é bastante diferente.

A partir principalmente da Conferência das Nações Unidas de 1992, realizada no Rio de Janeiro, muitas empresas passaram a assumir as responsabilidades ambientais de suas atividades – inaugurando a “gestão ambiental empresarial”. Em paralelo, outros segmentos da sociedade também evoluíram, como governos que incluíram mecanismos de participação em processos decisórios, como no licenciamento ambiental; e também a própria ciência, que ampliou seu conhecimento dos problemas globais, principalmente as mudanças climáticas.

O reconhecimento da complexidade inerente a estes problemas ambientais globais trouxe a convicção de que a atuação regulatória local não será suficiente para seu enfrentamento. Surgem assim novas formas de tomada de decisão, baseadas em processos de negociação multilateral. São estes os “regimes ambientais internacionais”, termo que se refere aos sistemas de governança compostos por princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão em uma determinada área da questão ambiental das relações internacionais, em torno dos quais convergem as expectativas e interesses dos diversos grupos sociais.

 

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Ao longo das últimas décadas os regimes ambientais internacionais têm sido criados principalmente utilizando a estrutura das Nações Unidas, com objetivo de buscar soluções àqueles temas estratégicos nos quais a ação dos estados nacionais é insuficiente, e mesmo os arranjos tradicionais das relações internacionais (como tratados bilaterais) não atigem os resultados necessários. Em seu lugar, os regimes ambientais internacionais operam estabelecendo um arcabouço geral (framework, em inglês), no qual são realizadas discussões e conduzidas negociações entre as partes, com vistas a estabelecer regras de conduta, procedimentos de conformidade e instrumentos de implementação (como mecanismos de cooperação e financiamento, dentre outros). Usualmente legitimados por acordos vinculantes, estes regimes promovem certa transferência de poder dos estados nacionais para instituições supranacionais, que atuam no processo em conjunto com outros grupos de interesse (governos regionais, corporações privadas, sociedade civil organizada, universidades, dentre outros).

O caso mais emblemático de um regime ambiental internacional é o das mudanças do clima, tema particularmente propício a este encaminhamento dadas suas características de escala global e alta complexidade; baixa efetividade dos instrumentos regulatórios tradicionais; multiplicidade e diversidade dos atores envolvidos; e alto grau de incerteza científica. Para lidar com essas características, ainda na década de 1980 criou-se o IPCC – International Pannel on Climate Change, órgão científico internacional que fornece dados qualificados para tomada de decisão. Mas a formalização do regime só ocorreu em 1992, com o estabelecimento da Convenção-Quadro das Mudanças do Clima, durante a conferência da Rio- 92. A partir desse arcabouço iniciou-se um amplo processo de negociação por meio de encontros, as Conferências das Partes (COPs), celebrando instrumentos importantes – como o Protocolo de Kyoto, em 1997, e o Acordo de Paris, em 2015.

Além das mudanças do clima outros temas ambientais têm se beneficiado da criação de regimes ambientais internacionais, como é o caso da proteção da camada de ozônio, dos poluentes orgânicos persistentes, da proteção à biodiversidade, dentre outros. Mas, sem dúvida, nenhum adquiriu a relevância ou a divulgação daquele das mudanças climática – pelo menos até agora.

 

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A emergência da poluição pelos plásticos e suas múltiplas soluções

Não é de hoje que a os efeitos ambientais dos plásticos têm suscitado acalorados debates na sociedade. Por mais que seja impossível pensar na vida moderna sem esses importantes materiais, a forma como produzimos, utilizamos e descartamos produtos e embalagens plásticas tem trazido diversos problemas ambientais. A questão começa com sua matéria-prima principal, o petróleo, recurso fóssil e finito; passa pelos impactos ambientais de cada etapa produtiva – extração, refino, petroquímica, e indústrias do plástico; e culmina no descarte, muitas vezes inadequado, dos produtos que muitas vezes tiveram uma vida efêmera, como embalagens e itens descartáveis.

Mas assim como são muitas as vertentes do problema, também têm sido diversos os esforços para seu enfrentamento. Principalmente nas últimas duas décadas, iniciativas têm surgido abordando vários destes aspectos. Exemplo são as inúmeras legislações restringindo o consumo ou banindo o uso de determinados produtos descartáveis, como sacolas, canudos, copos, talheres, dentre outros itens de “uso único”.

No outro extremo das cadeias de produção e consumo tem sido cada vez mais divulgado o problema do “lixo no mar”, do qual os plásticos representam mais de 80% em peso. Esta forma de poluição é resultado basicamente da gestão inadequada dos resíduos em terra, por dois mecanismos: descarte inadequado pela população; e perdas dos sistemas de gerenciamento de resíduos. Neste caso, já temos diversas propostas de empresas, governos e organizações atuando desde a limpeza das praias até assumindo compromissos para melhores políticas públicas, investimentos em infraestrutura e promoção da educação ambiental.

Há também outras iniciativas, menos visíveis, que focam em questões mais técnicas do setor – como os bioplásticos, a eliminação de aditivos problemáticos e ações em atividades específicas da cadeia de produção. Porém, por mais que sejam muitas as iniciativas de enfrentamento à questão, cada uma destas acaba por abordar apenas uma parte do problema, sendo urgente uma concertação de esforços para um encaminhamento abrangente para uma maior sustentabilidade dos plásticos. É justamente essa a proposta da recente decisão das Nações Unidas.

 

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Um acordo vinculante para os plásticos

Assim como no caso das políticas públicas, os regimes ambientais não surgem repentinamente. Ao contrário, são construções que evoluem da maturidade da sociedade em discutir e buscar soluções a um desafio comum. No caso da questão dos plásticos, as ações apontadas anteriormente fomentaram iniciativas coletivas – seja de indústrias, como a Alliance to End Plastic Waste; seja de entidades da sociedade civil, como a Stop Plastic Pollution. Neste sentido, uma importante iniciativa foi a criação do Compromisso Global por uma Nova Economia do Plástico.

Lançado em 2018 pela Fundação Ellen MacArthur, principal think-tank de Economia Circular no mundo, em colaboração com as Nações Unidas, o Compromisso reúne empresas, governos e entidades que se comprometem a mudar a forma de produzir e usar os plásticos –eliminando o que não é necessário, inovando no projeto dos produtos, ou garantindo a circularidade dos resíduos. Reunindo mais de 500 organizações, que do lado empresarial são responsáveis por 20% das embalagens mundiais, também congrega importantes ONGs, universidades e instituições financeiras. Cada entidade assume compromissos que apoiem a visão de uma nova economia dos plásticos, com metas até 2025, divulgando seus resultados em relatórios anuais.

Estas experiências demonstram a evolução do debate internacional, que em maio de 2019 se refletiu no âmbito dos regimes ambientais internacionais já existentes. Naquela data, realizou-se uma COP conjunta de três Convenções: Basiléia (sobre movimentos transfronteiriços de resíduos); Roterdã (sobre comércio internacional de produtos químicos) e Estocolmo (sobre Poluentes Orgânicos Persistentes). Na ocasião, 1.400 delegados de 180 países ratificaram alterações em cláusulas desses três acordos, incluindo uma para contemplar os resíduos plásticos em um acordo vinculante global, que torne seu comércio mais transparente e melhor regulado.  Era o prenúncio do que viria a seguir.

Assim, simultaneamente a uma repercussão cada vez maior do problema do lixo no mar, em 02 de março de 2022 a 5ª Assembleia Geral do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas aprovou uma resolução sobre a poluição dos plásticos, dando início formal à criação de um novo regime ambiental internacional.

Conforme delegados das Nações Unidas, a Resolução aprovada é o resultado de cinco anos de negociações, e basicamente propõe o desenvolvimento de um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre poluição por plásticos, incluindo o meio marinho. Para isso, no documento se propõe o estabelecimento de um Comitê Intergovernamental de Negociação a partir do segundo semestre de 2022, que deverá contar com subsídios de um fórum de múltiplos atores para, até final de 2024 propor o texto de um acordo para votação pelos países.

 

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Em relação ao conteúdo do Acordo, a Resolução ponta que este deve conter alguns aspectos-chave da questão, como por exemplo: a promoção de uma produção e consumo sustentáveis dos plásticos, incluindo o projeto de produtos, a melhor gestão dos resíduos e a economia circular; criação de mecanismos de cooperação, assistência técnica e financeira; elaboração de planos de ação nacionais; articulação de dados e monitoramento de resultados; adoção de mecanismos de cumprimento (compliance), dentre outros.

Segundo os próprios dirigentes das Nações Unidas, a Resolução já é considerada o documento ambiental mais importante desde o Acordo de Paris, de 2015, e caso se configure de fato um novo regime, será o principal desde a Convenção-Quadro das Mudanças Climáticas, proposta em 1992.

 

Conclusão: o que um novo regime significa e quais efeitos para as empresas?

Criar um novo regime ambiental internacional é um enorme desafio. Além de demandar investimentos na criação de novas instituições (como a UNFCCC no caso das mudanças do clima), os países e demais organizações deverão colaborar para a criação do regime, e depois atuar no cumprimento de suas determinações. São ações que deverão afetar governos, empresas e organizações da sociedade civil nos próximos anos, e para as quais devemos nos preparar.

Surgem também novas oportunidades. Por exemplo, se por um lado poderão surgir novas diretrizes para restrição de produtos, como os de “uso único”, fazê-lo dentro do arcabouço geral de um acordo vinculante tende a harmonizar as iniciativas já curso para empresas que já estão enfrentando marcos legais distintos nos países onde atuam. Um acordo poderá também incentivar negócios, como por exemplo criando demanda para materiais como plásticos de fonte renovável ou biodegradáveis, estimulando inovações e permitindo reduções de custo com o aumento da escala. Mais ainda, novas políticas públicas deverão surgir, como incentivos tributários e fiscais fundamentais para soluções tanto de materiais, como de criação de infraestrutura de coleta seletiva e logística reversa.

De forma geral, o que se espera da um acordo vinculante é que pavimente o caminho rumo à uma Economia Circular dos plásticos. Mais do que acabar com o lixo no mar, ou com a poluição plástica, um acordo deve ser parte de uma mudança mais ampla, na forma da sociedade lidar com a própria ideia da “descartabilidade”, e de como usamos os plásticos – por exemplo fazendo com que características como seu longo tempo de degradação seja uma vantagem à sociedade, pela maior possibilidade de geração de valor por mais tempo, ao invés de ser causa de um problema ambiental.

 

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Nesse sentido, assim como em qualquer tema da sustentabilidade, o combate à poluição pelos plásticos passa por reconhecer que são os hábitos e escolhas de consumo que determinam as decisões corporativas das empresas; e as demandas sociais e escolhas eleitorais individuais que definem os governantes e as políticas públicas dos governos.

É nesse sentido que a sociedade se empodera para a mudança, tendo como forte instrumento a possibilidade aberta pelas Nações Unidas de termos, passados 50 anos da Conferência de Estocolmo, um novo e enorme passo adiante com a criação de um novo regime ambiental internacional voltado a combater a poluição pelos plásticos. A cada um de nós, empresas e pessoas, cabe colaborar em suas esferas de atuação para que este represente nossas melhores expectativas de um mundo limpo, justo e sustentável.

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